Espaços flutuantes

Ligia Canongia

Talvez a questão central do trabalho de Roberto Cabot seja o ilusionismo. Não o ilusionismo no sentido renascentista, ligado aos problemas da representação, mas aquele que alude diretamente às armadilhas e à volatilidade da percepção. O que interessa nessa obra não é a ilusão como artifício para a representação do mundo, com a consequente recorrência aos modelos empíricos e à perspectiva, mas, diversamente, a ilusão como instrumento que enseja e fomenta o imaginário. O ilusionismo assim como seu desdobramento no trompe l’oeil são dispositivos recuperados por Cabot da tradição para o olhar contemporâneo, não somente como formas de desviar o senso perceptivo comum, como ainda de despertar fluxos mais inesperados e volúveis na visão cotidiana da realidade. O que importa, desde a modernidade, é o deslocamento dos territórios usuais da representação para lugares mais ambivalentes, que se ajustem com maior afinidade à flutuação dos novos tempos, e que possam incluir, hoje, e em caráter simultâneo, tanto a história da arte, quanto as linguagens digitais mais recentes.

Cabot compreende o mundo como um cristal, cujas inúmeras facetas reverberam igualmente inúmeras realidades, sem que elas sejam autônomas ou cindidas, mas, ao contrário, solidárias. Essas realidades são abarcadas ao mesmo tempo, concentradas em um só espaço, na tentativa de resumir situações e lugares, suas irradiações e distâncias, em um feixe descomunal. Quer sejam pinturas, fotografias ou ambientes multimídia, o artista entende a linguagem como uma rede de conexões simbólicas, uma rede flexível e mutante, que ultrapassa as convenções da cronologia e da geografia clássicas, criando fenômenos visuais que se justapõem e acontecem na simultaneidade.

“O Aleph”, de Jorge Luis Borges, seria a metáfora perfeita desse cristal capaz de nos dar a ver, em um “instante gigantesco”,1 a totalidade do universo, do conhecimento e da memória. Remontar ao conto de Borges é ratificar o desejo da arte de unir terrenos e ideias descontínuas em sínteses ambiciosas. O espelho funciona como chave mestra das operações de Roberto Cabot; o espelho como conceito, mais do que como objeto físico. Dele, o artista abstrai as noções de duplicação e de projeção espacial, que estimulam a expansão múltipla e errática das

Ligia Canongia

imagens, e que tanto lhe interessam. Da mesma forma, o espelho é a figura convergente de Borges, a partir da qual se pode ver o espetáculo caudaloso do Todo em qualquer de suas partes: uma figura improvável, mas pertinente no âmbito simbólico, que centraliza e espirala, indefinidamente, as relações entre nossa percepção e o mundo ou entre a ilusão e a realidade.

Peça importante no contexto da exposição, A máquina (de reflexão), projeto desenvolvido desde 2003, funciona como um farol para o conjunto dos trabalhos. Torre composta por pedaços de madeira e espelhos, e ainda uma parafernália de objetos e estímulos díspares, essa “máquina” é o espelho do próprio desgoverno de nosso olhar, da ordem permutável dos tempos e dos espaços e, sobretudo, da imprecisão dos limites entre as coisas reais e ilusórias. Espaços em movimento e temporalidades flutuantes, eis aí o seu mote. Máquina sem automatismo, desgovernada, cujas engrenagens autógenas se regulam por uma ordenação rebelde e volúvel, essa escultura constitui o paradoxo da ideia mesma de maquinismo: é, simultaneamente, seu duplo e seu aniquilamento. Gambiarra de dispositivos precários, que alude às “impurezas” e à desconstrução da Tropicália, de Oiticica, e que se realimenta e se multiplica no espelhamento, a “máquina” é o lugar da descontinuidade, por excelência. Lugar da justaposição de acidentes e imprevistos, que embaralham nossa percepção espacial e desorientam a especificidade de toda mecânica. “Multiplicador de luz e desdobrador de visão”,2 segundo palavras do artista, essa escultura faz do mundo um campo de áreas cinéticas em convulsão, indeterminando quaisquer pontos de fuga, horizontes e origens. Sua instabilidade, ao mesmo tempo lúdica e obscura, mascara e refaz o real continuamente, com a iminente sensação de perda do nosso próprio fio terra.

A questão da diluição dos espaços fica ainda mais evidente em trabalhos como os E-Scapes e Aleph III, em que Roberto Cabot efetivamente abole fronteiras e aproxima longitudes. Nos E- Scapes, justapõe paisagens de regiões distantes, inaugurando cidades imaginárias, constituídas por fatias de cada uma delas no real. As fotomontagens abrem-se como janelas-espelhos para terras fantasiosas, que nada refletem senão a fusão desejante de lugares impossíveis. Identidades reconhecíveis apenas em fragmentos de paisagens, essas fotografias desmontam o aspecto documental da técnica em relação a seus referentes, e se relacionam apenas com o espelho interior do artista e sua idealização. A produção de “enganos”, que A máquina (de reflexão) já sinalizara, coloca-nos agora frente a frente com cartões-postais de lugar nenhum, que denotam, a um só tempo, a monstruosidade dos efeitos da globalização e a mesmice do

olhar, a partir da reprodutibilidade incansável das imagens. “Esse engano aplica-se ao olhar linear, quotidiano e viciado, com o qual se costuma acordar pelas manhãs”.3

Em Aleph III, colagem de várias cidades do planeta conectadas simultaneamente pela internet, Cabot aglutina territórios e sons longínquos em espaço e tempo presentes, como a amalgamar o mundo no cristal borgiano e a tensionar as diferenças na totalidade. Afinal, o hibridismo e a urgência dos processos virtuais são um nocaute nas representações clássicas: um cubismo latejante, elevado às suas últimas consequências. O painel luminoso desse trabalho, “acordado” dia e noite, e em tempo real, traz o mundo inteiro a nossos pés, como em um passe de mágica. Máquina giratória que percorre o planeta e o concentra no “instante gigantesco” de Borges, Aleph III, no fundo, é uma colagem que pulsa em qualquer lugar e em tempo algum, reclamando sentido para a velocidade da vida de hoje.

A busca do Aleph está em toda parte, em toda a obra: essa procura intermitente pelo Todo, ainda que apenas vislumbrado pela ilusão. Na verdade, Roberto Cabot propõe a diluição das estruturas rígidas do mundo, em favor de ocorrências dinâmicas e permutáveis, cuja elasticidade abrace as contradições e as derivas. Sua obra segue de perto a linguagem das redes digitais de comunicação, a possibilidade das trocas voláteis e simultâneas que elas engendram, e pontua, quer por objetos, por jogos especulares ou imagens, a complexidade das transformações que se abateram sobre a percepção contemporânea.

1 BORGES, Jorge Luís. O Aleph. São Paulo: Globo, 2001.

2 CABOT, Roberto – troca de emails com a autora, posteriormente publicados no livro de

artista Reflexões, Rio de Janeiro, 2004. 3 Idem.